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Eventos em São Paulo discutiram proteção de dados, privacidade e a vigilância global

Em meio ao mal-estar da aprovação do polêmico relatório final da CPI dos Crimes Cibernéticos, dois grandes eventos sobre vigilância, tecnologia, governo aberto, privacidade e proteção de dados ocorreram em São Paulo: o Seminário Internacional da Privacidade e Vigilância, nos dias 4 e 5 de maio, no auditório da Ação Educativa; e a Cryptorave 2016, no Centro Cultural São Paulo, nos dias 6 e 7 de maio. Dezenas de convidados nacionais e internacionais marcaram presença.

Presente nos dois eventos, Harry Halpin, presidente do conselho do Leap Encryption Access Project (Leap, projeto de código aberto para e-mail criptografado, em tradução livre), ao defender o Marco Civil brasileiro, “considerado muito agressivo (positivamente) para o restante do mundo e que agora está sendo atacado”, demonstrou ciência das possíveis consequências da aprovação do relatório final da CPI.

Halpin também destacou o excesso de vigilantismo estatal, principalmente o estadunidense e, como consequência, com o futuro da liberdade de expressão na web. Segundo ele, inúmeras pesquisas acadêmicas apontam que pessoas que se sentem vigiadas não costumam expor sua opinião na rede.

Ainda sobre a relação entre vigilância e liberdade de expressão, Dia Kayyali, jornalista independente e especialista em segurança e privacidade, declarou que “a web ainda não é o que a gente queria do ponto de vista de um direito”.

“Em Oakland [cidade do estado da Califórnia], a perseguição ocorre principalmente sobre bairros onde vive a comunidade negra”, relata Kayyali. Segundo Kayyali, a repressão direcionada e a prisão de determinados militantes são precedidas por um intenso monitoramento de redes sociais. “Eles [policiais] adoram espionar as redes sociais, e dizem ‘Olha, sou um espião!’”, ironiza.

Kayyali conectou o caráter racista das ações policiais em Oakland com as operações especiais que têm ocasionado mortes de moradores de favelas cariocas. De acordo com Kayyali, a situação está intimamente imbricada à realização dos Jogos Olímpicos do Rio, cidade onde militantes também tem sido constantemente vigiados via redes sociais.

Nos últimos anos, aliás, com o crescimento do vigilantismo global, grandes eventos esportivos se tornaram verdadeiros eventos de segurança. Para a realização dos Jogos de Londres, em 2012, foram instaladas 900 câmeras de vigilância, o que incomodou boa parte da população local. “A mídia tradicional pouco divulgou, mas tanto em Atenas quanto em Londres, manifestantes quebraram câmeras e jogaram tintas nas câmeras distribuídas pelas cidades”, conta Kayyali.

Curiosamente, Wenlock e Mandeville, as mascotes dos Jogos Olímpicos de Londres, assemelham-se mais a câmeras de vigilância que a gotas de aço (de acordo com seu propósito inicial).

Fernanda Bruno, professora do programa de pós-graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ e debatedora nos dois encontros, afirma que várias tecnologias surgem e se aperfeiçoam como herança destes grandes eventos. Contudo, um dos pontos críticos para ela é a falta de controle diante de processos de vigilância.

Como exemplo, ela cita o fato de que o Centro de Operações Rio (COR), implementado com o foco nos Jogos Olímpicos, apresenta parceiras questionáveis do ponto de vista da liberdade e da privacidade das pessoas, como IBM, o Waze e o Twiter.

“O problema é: Os dados de uma pessoa que está no trânsito serão visualizados por qual agente? Qual será o efeito? Qual o fim? É bastante difícil saber disso. Cria assimetria, não se tem controle”, critica a pesquisadora.

Vigilância em massa

Os encontros destacaram uma estratégia deliberada que tenta desmontar a estabilidade e mesmo a governabilidade de Estados-Nação. “O [Edward] Snowden pode até estar crendo ser um Dom Quixote, mas pode estar sendo um inocente útil nesse processo. [Com o governo estadunidense permitindo que viva] camufla-se uma guerra híbrida em meio a dessensibilização da sociedade”, afirma Pedro Rezende, matemático e professor no Departamento de Ciência da Computação da UnB.

Em dezembro de 2015, a alemã Anne Roth foi comunicada pelo Twitter que sua conta estava sendo alvo de ataques por agentes governamentais. O governo alemão tem lhe acusado de vazar documentos. “É uma situação bastante desconfortável”, admite.

Roth convive com intensa vigilância por autoridades alemãs desde que seu parceiro foi acusado de terrorismo baseado simplesmente no padrão de sua escrita, que acidentalmente se assemelha ao de uma carta de ameaça.

Em seu trabalho na CPI sobre vigilância em massa, ela apura para o Parlamento alemão como cooperam as agências de inteligência da Alemanha e a NSA em seus programas de vigilância. Ela relata que a maioria do parlamento é conservador. “Nas audiências públicas com pessoas que participam do governo evitavam se aprofundar pois estão alinhados com os EUA”, revela.

Segundo ela, existem grandes obstáculos políticos para que a comissão de inquérito, da qual faz parte, ouça Edward Snowden e membros do governo estadunidense.

Segundo Roth, a escalada da vigilância global tem buscado escanear o comportamento das pessoas. “A pergunta é: Por que as pessoas não se importam? Vejo semelhança à questão nuclear e seus problemas. Foi necessário Fukushima e Chernobyl. A questão da vigilância é semelhante”, salienta.

Para Halpin, “trata-se de uma forma de poder tão forte quanto mísseis, a ponto de acabar com a legislação de um país”.

Para Pedro Rezende, da UnB), que trabalhou com controle de qualidade na Apple Computer, e com as primeiras aplicações em hipertexto, o problema é profundo e complexo.

Mesmo em plataformas “livres” como Tor e Openssl, existem desenvolvedores que trabalham como agentes duplos, ligados à NSA ou outros órgãos ligados ao governo estadunidense.

Já Halpin destaca que ainda é possível usar a web e preservar seus direitos fundamentais de privacidade, embora existam orçamentos grandiosos na NSA voltados para reverter processos de proteção, como a criptografia. “O melhor a fazer é não usar Windows nem o Mac”, alerta.

Carta Capital