Autor do clássico contemporâneo “Cidade de Deus”, livro que deu origem ao filme homônimo, o carioca Paulo Lins tinha acabado de chegar ao Festival Literário de Votuporanga (Fliv), no interior de São Paulo, em agosto passado, para dar uma palestra. Num dado momento, enquanto brincava com um menino fantasiado de palhaço numa pracinha da cidade, o moleque perguntou: “Sabe quem eu vou ver hoje?”. Paulo respondeu que não sabia. O menino embarcou: “O moço que escreveu aquele filme, ‘Cidade de Deus’. A minha professora vai levar. É meu filme preferido, mas minha mãe não me deixa assistir a ele. Já vi 12 vezes escondido”. Paulo sorriu tímido, deu tchau e seguiu para a palestra.

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— Quando o menino chegou lá e percebeu que era eu o palestrante, o autor da história de que ele tanto gostava, saiu correndo do meio da turma de alunos, subiu ao palco e me deu um beijo. Foi muito emocionante — desmancha-se Paulo Lins, que em 2014 participou de mais de 50 encontros literários em várias cidadezinhas do Brasil. — Houve outro evento desses, em Bragança Paulista, onde conheci quatro jovens, e cada um me entregou um livro. Eram quatro moradores de favelas da cidade dizendo que aprenderam comigo que favelado também podia ser escritor. Quando eu teria a chance de conhecê-los, de saber que essas transformações de fato acontecem? Fico muito feliz que encontros literários tenham se tornado uma moda no país. Antes só havia eventos assim para o público rico, em escolas particulares, centros culturais. Agora tem feira literária em tudo quanto é cidade, e, como elas são gratuitas, todo mundo pode ir. Acredito que esses encontros são hoje o principal incentivo à leitura no Brasil.

PÚBLICO DE BLOCO DE CARNAVAL

A partir do mês que vem, quando começa a temporada de 2015, a previsão é que o número de eventos supere o do ano passado, apostam curadores e especialistas. O sucesso é tanto que alguns encontros atraem como micareta: a feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, por exemplo, cuja próxima edição será em junho, recebeu cerca de 450 mil pessoas em 2014. O Bloco da Preta, capitaneado pela cantora Preta Gil, arrastou pouco mais do que isso pelas ruas do Centro do Rio no último carnaval.

— Acho que nos últimos cinco anos estive em cerca de 50 ou 60 eventos. Feiras com três estandes apenas ou com uma centena deles — conta o escritor gaúcho Carlos Schroder. — O que me deixa muito feliz é o surgimento de eventos no interior dos estados e o crescimento das pequenas feiras. Mesmo as menores entenderam a importância de ter debates e escritores em sua programação, e não apenas o simples comércio de livros. Em algumas regiões, os eventos estão substituindo as bibliotecas públicas no papel de juntar o leitor com os livros e os escritores, porque têm um poder maior de comunicação e interação com a comunidade. A verdade é que o livro foi praticamente expulso da vida pública brasileira. Você não vê as pessoas lendo nas praças, nas ruas, elas carregam qualquer coisa nas mãos, menos livros. As publicações perderam muita força como signo, como símbolo. A imagem do livro se desgastou a tal ponto que precisamos de campanhas e mais campanhas de incentivo à leitura no país. Mas as feiras e os festivais estão recolocando o livro em pauta.

Muita gente atribui o sucesso desse tipo de evento ao exemplo bem-sucedido da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que caminha para sua 13ª edição. Programada entre os dias 1º e 5 de julho, a Flip já levou à cidade autores do porte de Eric Hobsbawm, Robert Crumb, Christopher Hitchens e Nadine Gordimer, mudando completamente a percepção turística de Paraty. Muitas cidades imitam até o nome do evento: depois da Flip, já surgiram a Fliporto, em Porto de Galinhas (desde 2014, ela se mudou para Olinda), Pernambuco; a Fliparanapiacaba, em Santo André, São Paulo; e outras tantas, como a Fliro, em Ariquemes, Rondônia; a Flimar, em Marechal Deodoro, Alagoas; a Flivima, em Visconde de Mauá, Rio de Janeiro; a Flimt, em Cuiabá, Mato Grosso; a Flap, em Calçoene, Amapá; a Flipipa, em Pipa, Rio Grande do Norte; e a Flaq, em Aquiraz, Ceará.

O jornalista e agitador cultural baiano Emmanuel Mirdad conta que até o estilo colonial de Paraty serviu de referência quando ele bolou uma festa literária para fomentar o turismo do Recôncavo Baiano. Apesar de a cidadezinha de Santo Amaro parecer a opção mais óbvia, por ser o berço de Caetano Veloso e Maria Bethânia, principais referências culturais da região, ele decidiu implantar a experiência na pequena Cachoeira — que não tem sequer uma livraria ou biblioteca.

— Arquitetonicamente, a cidade é muito parecida com Paraty — comenta Mirdad, que contou até com a consultoria de Mauro Munhoz, diretor-presidente da instituição Casa Azul, organizadora da Flip, antes de inaugurar a Flica (Festa Literária Internacional de Cachoeira), em 2011. — Hoje, a Flica é o segundo “São João” da cidade. Não dou cinco anos para alcançarmos a Flip. Aqui é uma Suíça, não há só palestrantes de esquerda, mas de direita também. Cabe Paulo Coelho, cabe Olavo de Carvalho. Meu sonho é trazer um escritor como John Green para encher a cidade. E a Flica paga bom cachê (diferentemente da Flip, em que os palestrantes são convidados, mas não remunerados, na festa de Cachoeira os escritores recebem R$ 3 mil) e sempre tem autores baianos em todas as mesas, para valorizar a cultura local.

“SIGA O CAMINHO DO DINHEIRO”

Idealizador e curador do Festival Literário de Araxá, o Fliaraxá, em Minas Gerais, o jornalista e escritor Afonso Borges acredita que as feiras literárias só se tornaram tão profícuas nos últimos anos por causa de uma alteração recente na Lei Rouanet.

— Eu tenho uma máxima desde meus tempos de repórter investigativo que é: “siga a grana”. Desde que houve essa alteração na Lei Rouanet, no fim da gestão da Ana de Hollanda, as feiras, festivais e afins, que eram enquadrados no artigo 26, passaram a ser enquadrados no artigo 18, ou seja, tornaram-se 100% dedutivos. Por isso, passaram a ser um investimento tão interessante para as empresas — argumenta Afonso.

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Vale lembrar que, desde 2006, o BNDES já destinou mais de R$ 1,2 bilhão para financiar 26 projetos do mercado editorial —, e as festas literárias abocanharam boa parte dos recursos.

Nesse “mar de feiras”, compara Afonso Borges, o mais difícil é fazer um evento consistente, que tenha conteúdo social e cultural, que provoque, de fato, o incentivo à leitura.

— As grandes feiras são absolutamente comerciais, forçam a entrada de estudantes para aumentar o número de visitantes. O diferencial é uma boa curadoria. Um evento literário desse porte muda a história de uma cidade. Mudou a história de Cartagena, na Colômbia, mudou a história de Paraty. A literatura, ao contrário das outras artes, tem esse poder: ela não é autocentrada, tem todos os assuntos ao seu redor. Um evento literário pode falar de teatro, música clássica, meio ambiente. Eu acredito muito no poder de uma boa palestra — diz Afonso, lembrando uma história da qual nunca se esqueceu: em 1987, num dos eventos literários que deram origem à Fliaxá, houve o lançamento do livro “1968: O ano que não terminou”, do jornalista e colunista do GLOBO Zuenir Ventura. Vinte anos depois, quando Zuenir voltou à cidade para outro evento, uma mulher se aproximou dele e contou que havia comprado o livro da primeira vez e, graças à leitura, tinha decidido completar sua formação, pois só possuía o diploma de professora primária. Estava ali para agradecer ao autor pelo estímulo.

Zuenir, que também se tornou figura fácil em eventos literários no país, faz sua avaliação:

— A leitura no Brasil sempre foi uma obrigação chata, um dever, não um prazer. Nesses eventos vejo crianças brincando com os livros, dessacralizando o objeto, transformando numa coisa lúdica, prazerosa. Acho que é por isso que eles são cada vez mais populares e, quanto mais se parecerem com eventos e não com aulas, melhor. Numa época em que tudo é medido por tecnologia (telefone, internet), esse olho no olho é fundamental.

BRIGAS E UMA QUASE TRAGÉDIA

Mas, infelizmente, os festivais literários não contam só histórias de sucesso.

— Há no Brasil muitos eventos picaretas, que são apenas para inglês ver. Captam uma bolada e fazem qualquer coisinha, sem se preocupar com uma curadoria adequada. Só que esses eventos costumam ter vida curta, pois não há mais espaço para amadorismo, e o mercado ainda é pequeno, logo os picaretas ficam marcados — defende o escritor Carlos Schroder, lembrando que “tem de tudo” nesse tipo de evento. — Eu já vi autor quase sair no braço com leitor, mediador jogar água em autor, gente que deixou de comprar comida para comprar livros. Eu mesmo presenciei uma quase tragédia em junho, quando a cidade de Jaraguá do Sul sofreu uma enchente terrível, bem nos dias em que realizávamos a Feira do Livro do município: a água do rio chegou a exatos dois metros de 70 mil livros que estavam nos estandes, e ficamos todos ilhados.

CURIOSIDADES DAS NANICAS

– A Feira do Livro de Ribeirão Preto recebe mais de 500 mil pessoas anualmente

– A Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica) acontece dentro de um convento

– A Feira Literária do Distrito Federal acontece dentro de um shopping, o Taguatinga Shopping

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– Já existem feiras especializadas em livros indígenas, e bienais exclusivas de livros espíritas

– O evento literário mais antigo do Brasil é a Feira do Livro de Porto Alegre, que já está na 60 edição (a primeira foi em 1955)

– O maior cachê já negociado por uma participação em festa literária no país foi ao rapper e escritor Gabriel, o pensador, cuja proposta para ser o patrono da Feira do Livro de Bento Gonçalves, em 2012, foi de R$ 170 mil. Houve grita e polêmica, e o músico recusou o pagamento. Em média, um escritor recebe entre R$ 1 mil e R$ 3 mil para participar destes eventos.